ATENÇÃO: CASO VOCÊ SEJA SENSÍVEL A TEMAS QUE ENVOLVAM VIOLÊNCIA, ESSA HISTÓRIA CONTÉM GATILHOS
Todos os nomes foram trocados para que a identidade da vítima seja mantida em sigilo
POR DANIELA TEIXEIRA
“Você não é gente, você é bicho. E bicho tem que comer comida do lixo!”
Assim Gabriela era tratada todos os dias desde que, aos 6 anos de idade, foi viver com Benedita, uma amiga da família que a adotou informalmente ao saber que sua mãe tinha morrido, seu pai havia sido preso e sua avó estava doente.
Desta vez, no entanto, Benedita mostrou que não havia limites para a sua maldade. Depois de deixar a menina por mais de três dias sem comida, ficou revoltada quando a garota, já fraca, implorou por pelo menos um pouco de alimento.
Em meio a gritos e chutes, a mãe agarrou a filha pelo cabelo, enfiou sua cabeça no lixo da cozinha e esfregou os restos de comida e a sujeira por todo o seu rosto, deixando-a sem ar.
“Você não queria comida? Agora come, sua cachorra. É assim que a gente alimenta bicho”, disparou a matriarca.
Essa, contudo, não foi a primeira vez em que Gabriela teve que usar os restos do lixo para não passar mal de fome. Ela sempre sofreu privação desde seu primeiro dia na família adotiva.
“Nunca pude comer à vontade. Sempre comia os restos que eles deixavam no prato ou, se não deixassem nada, eu tinha que tentar encontrar algo no lixo”, relembra.
Além disso, Benedita e suas duas filhas, mais velhas que a menina, faziam questão de comer as guloseimas na sua frente.
“Imagina uma criança morrendo de fome e vendo as pessoas comendo pizza, chocolate, sorvete e muitas outras coisas perto dela? Eu lembro do cheiro da comida e da dor no estômago que eu sentia até hoje.”
Espancamentos
Não bastasse a falta de comida, as surras eram frequentes. “Ela me espancava por qualquer coisa. Até as filhas dela me batiam também. Um dia eu comi uma batata frita. Isso mesmo, só uma. E fui espancada até perder a consciência. Depois, fui acordada com um balde de água suja na cara”, relata.
Gabriela também era a responsável por preparar os alimentos para a família. “Eu tinha que cozinhar, mas não podia sequer experimentar os temperos. Com 6 anos de idade ela me ensinou, à base de pancadas, e depois disso Benedita nunca mais cozinhou. Só eu. Eu trabalhava de domingo a domingo.”
Depois de fazer a comida, a garota tinha que permanecer em pé, ao lado da mesa de jantar, para atender a qualquer pedido delas. “Eu tinha que servir os pratos, buscar água, suco e limpar qualquer coisa que elas deixassem cair no chão.”
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Em seguida, Gabriela era observada de perto pela mãe para que não comesse as sobras das refeições. “Quando ela estava de bom humor, ela me dava algo, mas na maioria das vezes eu tinha que comer o que tinha sobrado nos pratos mesmo”, conta.
Somente um dia da semana a garota tinha a chance de se alimentar melhor. “Aos domingos, depois que a família almoçava, ela geralmente me dava algo sem ser resto ou estragado para eu comer. Ela dizia que era para eu aproveitar porque ela tinha ido à missa e estava com o ‘espírito renovado’.”
Contudo, para as outras pessoas, Benedita se mostrava uma mãe amorosa. “Sempre que ela tinha visita eu era tratada bem. Ela me mandava vestir a única roupa boa que eu tinha, me deixava sentar à mesa e se gabava por tudo o que supostamente fazia por mim”, diz.
E acrescenta: “Até falava que eu estudava em escola particular, sendo que ela nunca sequer me deixou estudar”.
Ao longo dos seis anos em que esteve com Benedita, Gabriela nunca aprendeu a ler e nem a escrever.
“Eu vivia como uma escrava. Trabalhando para ela e para a família dela dia e noite.”
Além da exploração, a garota não tinha nem uma cama para dormir. “Eu forrava um lençol velho no chão da área de serviço e dormia lá. Quando estava frio era terrível. Ainda bem que onde a gente morava quase não fazia frio.”
Fim do tormento
As coisas, entretanto, mudaram quando seu pai biológico deixou a cadeia e foi visitá-la.
“Eu me lembrava dele, apesar de termos convivido só até eu fazer 5 anos. Ele era envolvido com muita coisa errada, mas sempre foi um pai amoroso”, garante.
Ao chegar de surpresa à casa de Benedita, o homem percebeu que sua filha nada mais era do que a empregada da família. Fora o fato de que a agora adolescente, de 12 anos, estava visivelmente muito abaixo do peso.
“Eu era pele e osso. Qualquer um que me visse, saberia que algo estava errado, mas ninguém nunca me ajudou. Todo mundo sempre preferiu fingir que estava tudo bem. Menos o meu pai.”
O homem chegou até a ser bem recebido por Benedita. Inclusive, a pedido dele, ela permitiu que Gabriela o acompanhasse em um passeio. Afinal, ele queria matar a saudade da filha.
Ao levá-la a uma lanchonete bem perto de onde a mãe adotiva morava, porém, o homem percebeu que a menina estava com muita fome. Então, com muita paciência e insistência, conseguiu fazer com que ela se abrisse e contasse sobre sua vida.
Confronto
Chocado, o pai não pensou duas vezes e, ao retornar à casa, avisou a mulher que levaria Gabriela embora.
“A Benedita não quis deixar, ameaçou chamar a polícia. Mas o meu pai, apesar de ex-presidiário, sempre foi muito inteligente. Ele disse que ia denunciá-la por trabalho escravo infantil. Aí ela mudou o tom com ele”, detalha.
Como a mãe adotiva não tinha a guarda oficial da adolescente, uma vez que apenas a tinha levado para viver com ela sem se preocupar com documentos, foi fácil para o pai tirar a menina de lá.
“Foi o melhor dia da minha vida. Eu até me emociono quando me recordo daquele momento”, confessa.
Mesmo assim, a vida com o pai não foi fácil. “Ele era um ex-detento, o que tornava bem difícil arranjar um bom emprego. Nós fomos morar na casa que minha avó deixou quando morreu. Era um lugar bem feio. E também chegamos a passar necessidade.”
Vale ressaltar, porém, que o principal nunca faltou: “Apesar dos momentos difíceis que vivemos, nunca me faltou amor. Desde que voltei a viver com o meu pai, fui tratada como uma princesa”.
Atualmente, inclusive, Gabriela segue morando com o pai. “Eu me casei, tenho um filho, mas meu pai continua vivendo comigo. Só que ele vai se casar com a namorada em breve e vai embora. Já estou triste”, admite.
Já Benedita, ao que tudo indica, não envelheceu bem. “Eu soube que ela tem uma doença degenerativa e não anda mais. E que as filhas nem querem saber dela. Uma amiga em comum contou que ela chega a passar dias sem tomar banho e sem comer direito porque as filhas dizem não ter tempo para cuidar dela.”
E completa: “Engraçado ela ser obrigada a ficar sem comer direito, né? Isso é o que eu chamo de carma. E não tenho a mínima dó”.
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Caso você ou alguém que você conhece esteja passando ou tenha passado por algo semelhante, não hesite em denunciar. No exterior, procure a delegacia mais próxima ou o consulado brasileiro. No Brasil, use uma das opções abaixo:
Polícia Militar: Ligue 190 – caso a criança esteja correndo risco imediato
Samu: Ligue 192 – caso seja necessário o socorro urgente
Disque 100: Este número recebe denúncias de violações de direitos humanos, feitas de forma anônima
Conselho tutelar: Os conselheiros vão até a casa denunciada e verificam o que está ocorrendo (todas as cidades contam com conselhos tutelares)
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