ATENÇÃO: CASO VOCÊ SEJA SENSÍVEL A TEMAS QUE ENVOLVAM VIOLÊNCIA, ESSA HISTÓRIA CONTÉM GATILHOS
Todos os nomes foram trocados para que a identidade da vítima seja mantida em sigilo
POR DANIELA TEIXEIRA
“Está tudo bem. Pais que amam muito suas filhas fazem isso”
Foram com essas palavras ecoando em sua mente que Fernanda saiu de sua sessão de terapia. Um turbilhão de sentimentos a acompanhava. Terror e alívio se misturavam dentro dela.
Incomodada com o fato de não conseguir estabelecer uma relação saudável com seu pai, a mulher, de 27 anos, procurou ajuda e ingressou em sessões semanais com um terapeuta.
O que ela não esperava era que, em pouco mais de dois meses, conseguisse desbloquear uma recordação tão terrível e entender claramente o motivo que a fez ter nojo de seu pai, com quem vivia desde os 4 anos de idade, quando sua mãe faleceu.
“Eu tinha algumas memórias soltas sobre isso. Cheguei a perguntar a ele uma vez o porquê eu me lembrava que eu sempre chorava muito quando ele me dava banho. Só que ele dizia que isso nunca tinha acontecido, que era loucura da minha cabeça”, conta.
Depois da sessão daquela tarde, porém, Fernanda sentiu tudo retornar de forma vívida em sua mente.
“Foi como se o meu cérebro tivesse me feito esquecer para me proteger, mas assim que recordei uma pequena coisa eu consegui me lembrar de tudo”, explica.
O próprio psicólogo ressaltou que aquilo era comum. “Ele disse que o cérebro pode bloquear traumas para nos proteger. Que é normal. Tem gente que passa a vida inteira sem se lembrar de grandes traumas do passado. Principalmente quando é algo que aconteceu no início da infância.”
Confronto
Enojada e amargurada com tudo o que voltou nitidamente em sua cabeça, Fernanda foi atrás do pai confrontá-lo.
“Eu queria olhar nos olhos dele e falar tudo o que eu finalmente tinha recordado. Mas, para a minha surpresa, ele se fingiu ofendido, começou a gritar pedindo respeito e dizendo que eu não passava de uma louca mentirosa.”
A esposa dele, sua madrasta, também entrou no meio da confusão. “Ela me expulsou de casa, me xingou de tudo quanto é nome e falou que eu estava tentando sujar a honra do homem mais honesto que ela já conheceu na vida.”
Sem saída, Fernanda pegou o que conseguiu de seus pertences e foi para a casa de uma amiga. A única certeza que tinha é de que não iria nunca mais olhar para o pai. Desta vez, sem sentir nenhuma culpa.
“Eu nunca me dei bem com ele. Sempre me senti constrangida, enjoada perto dele. Eu não entendia a razão. Depois que cresci, apesar de ainda morar com ele, eu tentava conviver o mínimo possível. Às vezes me sentia culpada por não conseguir nutrir aquele amor de filha por ele, mas depois entendi o porquê.”
E ressalta: “Ainda que a mente não se lembre, o instinto fala. A gente nunca deve duvidar do nosso sexto sentido. Se sentir mal perto de alguém é sempre um sinal importante”.
Depois de cortar relações com o pai e a madrasta, Fernanda continuou se lembrando do horror que passou quando pequena. “Minha mente parece ter se aberto de vez para revelar tudo.”
Mesmo assim, a moça chegou a se questionar se aquilo se tratava de uma ilusão. “Mesmo meu terapeuta garantindo que eram lembranças reais e não fantasias – por ele saber de todo o meu histórico com meu pai -, eu ainda tinha medo de estar sendo enganada pelos meus pensamentos e fantasiando algo que não aconteceu.”
Outra vítima
Contudo, a confirmação veio meses depois através de sua meia-irmã, filha de uma antiga namorada do pai, com quem Fernanda não mantinha uma relação estreita.
“Nós nunca fomos próximas porque ela nunca foi de frequentar a casa do meu pai. Só que quando ela ficou sabendo do que eles estavam falando de mim, afinal, meu pai e minha madrasta me difamaram para toda a família e vizinhança, minha meia-irmã me procurou para dizer que ele tinha feito o mesmo com ela.”
A revelação deixou Fernanda chocada, mas ao mesmo tempo trouxe tranquilidade. “Depois que ela me contou os detalhes, eu me acalmei. Foram meses de muita tensão. Pelo menos descobri que eu não estava louca mesmo e que aquele cara era e é um monstro.”
Entretanto, por falta de provas, as duas optaram por não procurar as autoridades. “O que a gente ia fazer? Que provas iríamos expor? Ia ser só a nossa palavra contra a dele e a dele contra a nossa. E ele finge bem. É muito amado pela família, por amigos e pelos vizinhos. Todo mundo o apoia.”
Mas a impunidade não tirou a paz de Fernanda. “Por incrível que pareça, só o fato de saber que eu não sou louca e que tudo o que eu lembrei é verdade, já me traz satisfação. Quanto a ele, só tenho a lamentar. Eu sei que cedo ou tarde a cobrança virá.”
Para ela, o pai ainda vai ser desmascarado. “Eu tenho certeza de que eu e minha irmã não fomos as únicas vítimas. Homens doentes assim nunca param. Em algum momento ele vai ser exposto.”
Questionada se não teme que outra criança tenha a infância afetada pelos crimes do pai, Fernanda admite: “Eu tenho muito medo. Peço sempre a Deus proteção para todas as meninas que, de alguma forma, passem pelo caminho dele. Mas, infelizmente, estou de mãos atadas”.
Perdão
Já sobre voltar a ter contato com o abusador no futuro, Fernanda dispara: “Jamais! Mesmo que ele admita o que realmente fez comigo e com a minha irmã, nunca mais quero nem pisar no mesmo lugar que ele”.
Mesmo assim, Fernanda não guarda rancor. “É difícil, mas entendi que odiá-lo só trazia consequências negativas para mim. E não quero dar esse poder a ele, de me fazer mal mesmo a distância. Por isso, sempre que sinto o coração voltando a ficar pesado, eu digo várias vezes em voz alta que o perdoo e me libero de qualquer conexão com ele.”
A moça também fez questão de deixar um recado para as vítimas que, como ela, bloquearam lembranças traumáticas.
“Ainda que você não se recorde dos detalhes, o seu instinto sempre vai mostrar que tem algo errado. Não duvide. Acredite nele. Ele não falha”, finaliza.
Para contar sua história, mande um e-mail para euvivi@fatosefama.com.br
Caso você ou alguém que você conhece esteja passando ou tenha passado por algo semelhante, não hesite em denunciar. No exterior, procure a delegacia mais próxima ou o consulado brasileiro. No Brasil, use uma das opções abaixo:
Polícia Militar: Ligue 190 – caso a criança esteja correndo risco imediato
Samu: Ligue 192 – caso seja necessário o socorro urgente
Disque 100: Este número recebe denúncias de violações de direitos humanos, feitas de forma anônima
Conselho tutelar: Os conselheiros vão até a casa denunciada e verificam o que está ocorrendo (todas as cidades contam com conselhos tutelares)
Delegacias especializadas no atendimento de crianças ou de mulheres
Qualquer delegacia de polícia
WhatsApp do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: (61) 99656- 5008